Sangue Novo é um projeto encabeçado pelo poeta José Inácio Vieira de Melo com o intuito de divulgar novos autores, entrevistando-os e publicando alguns de seus poemas, a serem reunidos, posteriormente, num único livro. Aqui podemos acompanhar as atualizações dos blogs de alguns desses poetas, além de postagens relacionadas à poesia.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Os afogados de Narciso


OS AFOGADOS DE NARCISO
                Clarissa Macedo

José Inácio Vieira de Melo vem se firmando cada vez mais como um dos poetas brasileiros que tem em sua obra uma marca, já imitada por alguns, e traços que a distinguem e tornam-na distinta.
            Em “A Pupila de Narciso”, poema do livro inédito de Vieira de Melo “Pedra Só”, que será publicado em setembro deste ano, encontra-se um ritmo que lhe garante a atenção do leitor. Partindo de um título sugestivo, o poema tem algo precioso: a presença de efeito das rimas internas. As estrofes ligam-se sonoramente, ultrapassando o nível do ritmo mais simplório e atingindo uma sonoridade digna de grandes poemas.
            Nada mais salutar que vestir Narciso com “a graça da Lua” e nomeá-lo de “cisne”, a mais charmosa das aves, para depois despedaçá-lo e em seguida louvá-lo. Bebendo de um mito muito antigo e inspirador como é a figura do Narciso, Vieira de Melo discute o fazer poético. A segunda estrofe comprova de maneira mais evidente a metalinguagem presente no poema: “Padece o poeta aos pedaços / no espelho límpido das águas” – note-se a presença da oclusiva bilabial ‘p’ no primeiro verso, o que confere uma cadência perturbadora num nível de desconstrução do ente do poema, o alvo do padecimento. Na clareza da consciência do ofício, presente no segundo verso da estrofe citada, o poeta sofre a dor de ser criador de criaturas estranhas e irregulares como são os poemas, oferecidas para muitos que não querem vê-las. A figura narcísica fulgura sem rumo exato, procurando seus pares, na obsessiva busca do encontro com sua raça, que são seus outros ‘eus’, que são outros criadores, que são um seu poema bem acabado.
            A última estrofe encerra a ideia do homem-criador. Através da imagem que joga com elementos do mar, metáfora que carrega a vastidão como marca mais imediata, e que evoca o ‘tempo’, páreo implacável, há a evidência da salvação, ainda que ‘tardia’, como destino inescapável. Mas salvação de quê? Daqueles que já estão afogados em mares questionáveis? O verso “salva a legião de afogados” não traz um tom superficialmente soberbo, tão desagradável, mas a dureza que é ter de salvar da alienação aqueles seres que nela estão, bem como salvar a poesia da artificialidade e dela mesma, tão arisca e fugidia; é importante perceber esses elementos atrelados ao sentido da palavra ‘afogados’, que já traz em si uma sentença. O poema questiona, numa síntese valiosa, o que significa fazer poesia, o que significa salvar aqueles que estão afogados na ‘espuma dos tempos’, mas que podem ainda não estar mortos.
É importante notar que as imagens do poema estão submetidas à ótica da pupila narcísica, presente no título do poema, que é aquela que se situa bem no meio da íris e que também é aquela que está sob a tutela do Narciso, que contempla o cosmo à procura da casta e que se contempla como aquele que a si próprio se basta, sendo Argos, sendo a cura, sendo deus.

Texto de Clarissa Macedo sobre o poema “A Pupila de Narciso”, de José Inácio Vieira de Melo, transcrito abaixo, na íntegra.

A PUPILA DE NARCISO


Vestido com a graça da Lua,
um cisne no lago do espaço.

Padece o poeta aos pedaços,
no espelho límpido das águas.

Narciso que cintila perdido,
buscando no rosto uma casta.

Até que na espuma dos tempos
salva a legião de afogados.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

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